Enamorados do Deus da Vida para a vida do mundo
Os Institutos Seculares
Sempre se afirmou que os Institutos Seculares nasceram como exigência de umas circunstâncias que, em meados do século xix, tornavam cada vez mais difícil a tarefa evangelizadora. Certo? Se olharmos para o coração da História, para o mais fundo, ali onde só o próprio Deus pode ler cabalmente e nós antevemos algo quando temos a coragem de ir muito mais além do visível, teremos de responder que só em parte. A industrialização, as revoluções, o aparecimento de uma classe operária à qual se tentou fazer crer que a Fé era um impedimento para os seus legítimos desejos de progresso, foram, talvez, “desculpas” do Espírito para fazer surgir na Igreja uma vocação diferente que só a partir do Amor tem sentido.
Não é este o âmbito de pormenores históricos: apenas os imprescindíveis para compreender quando e porque foi reconhecida a nossa existência como um autêntico dom do Espírito para uma Nova Era que apenas começava a vislumbrar-se. Nos finais do século xix e inícios do xx eram muitas as associações de seguidores de Jesus que caminhavam juntos, partilhando um mesmo espírito, sentindo-se irmãos com o empenho de encarnar e anunciar o Reino com todas as fibras do seu ser e do seu fazer, abraçando com um sério compromisso os conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência mas… sem hábito, sem vida comum… sem uma série de estruturas que se consideravam essenciais na vida religiosa reconhecida pela Igreja. Aqueles pioneiros queriam viver assim.
O Espírito, que é quem, em definitivo, move os corações, alentava neles um canto novo, inspirado na própria existência de Jesus, oculto na carpintaria de Nazaré, inspirado em Maria, mulher do povo, atenta às mil realidades correntes do quotidiano, cantando no meio dos seus o melhor hino do Amor maior. Sabiam que eram os precursores de uma realidade nova e não lhes importava arriscar tudo. Quando ainda não era moeda corrente a expressão “sinais dos tempos”, aquele punhado de sonhadores entendia que era preciso levar o Evangelho até às entranhas mais profundas da sociedade humana, até onde não é possível chegar senão “infiltrando-se” como mais um, partilhando com realismo e até às profundezas as suas penas, as suas preocupações, as suas alegrias, as suas incertezas, o seu ambiente de trabalho, os seus anseios, a sua luta pelo pão e pela cultura… Tornava-se urgente cravar a cidade de Deus nas próprias entranhas da cidade terrena, nas “fronteiras”, onde tanto significa avançar ainda que seja apenas um passo. O raciocínio, por outro lado, era simples: se Deus se fez um de nós, se quis fazer-se carne connosco, nascer de uma mulher, assumir a nossa condição inclusive até à morte… se se adentrou até tal ponto na vida e na história dos homens… não podia pensar-se que ai mesmo, sendo “mais um”, era possível segui-lo até às últimas consequências?
A Igreja, sendo mãe, acompanhava de perto aquele processo e via crescer no seu seio uma realidade nova que não “encaixava” em nenhum dos marcos reconhecidos como caminhos válidos para o “seguimento radical de Jesus Cristo”. Soube custodiar, orientar… e esperar. Também os tempos hão de amadurecer ao ritmo de Deus. Pouco a pouco aquelas tentativas foram tomando forma e nome até que a 2 de fevereiro de 1947, Pio XII promulgou a Constituição Apostólica Provida Mater Ecclesia reconhecendo este estilo de viver, dando-lhe um nome, abençoando o seu caminho e alentando-os a crescer em fidelidade ao dom recebido: tinham nascido os Institutos Seculares.
O que são os Institutos Seculares? A definição precisa do Código de Direito Canónico - e queremos trazê-la aqui porque, desde o empertigamento de toda a fórmula jurídica -, recolhe com precisão as suas características fundamentais:
«Instituto secular é um instituto de vida consagrada, no qual os fiéis, vivendo no mundo, tendem à perfeição da caridade e procuram cooperar para a santificação do mundo, principalmente a partir de dentro.»
(Can. 710)
Em três linhas temos concentradíssimos os elementos essenciais que caracterizam um Instituto Secular: consagração-secularidade-missão.
Começaremos pelo final: a “missão” não é outra coisa senão o anúncio explícito da Boa Nova de Jesus, o Senhor. Com todos os meios de que possamos dispor: com a palavra, com o silêncio, com o gesto, com o serviço… com toda a vida. Daí que nos atrevamos a dizer que a missão não é um “para quê” mas uma consequência inevitável das outras duas características nas quais nos vamos deter mais um pouco.
Consagração é a entrega da própria vida, «a íntima e secreta estrutura do nosso ser e do nosso agir», o selo de Deus que confirma o seu chamamento e acolhe a nossa resposta pela mediação da Igreja e do próprio Instituto. A consagração assume todas as fibras da existência: nada fica à margem e só pode ter sentido a partir do amor. O chamamento à consagração é primordial: Deus chega a nós, toca-nos o coração, chama-nos… e espera a nossa resposta. Pede-nos a vida para nos dar a Vida, pede-nos o tempo para nos converter em testemunhas da Eternidade, espera o nosso amor para nos enviar como sinais do seu Amor… O Seu olhar seduz-nos e quem o experimentou jamais o esquece. O caminho concretiza-se em castidade, em pobreza, em obediência: os três eixos da realidade humana. Há quem veja nestas três dimensões, abraçadas inclusive com votos, uma série de “renúncias”. Ainda admitindo outro ponto de vista, tenho de reconhecer que a palavra renúncia me produz um certo rubor: quem pode ficar a olhar para “o que fica” quando está loucamente enamorado e se sente profundamente amado, com uma profundidade inimaginável? Quem seria capaz de enumerar “o que deixa” quando só é capaz de pensar no que abraça? Quem seria capaz de falar de “renúncia” quando se sente tocado pelo único Senhor do mundo e da vida?
A Secularidade diz-nos que o mundo, com a sua realidade complexa, tantas vezes ambígua, com o seu trigo e cizânia, é o «lugar próprio da nossa responsabilidade cristã». Sentimo-nos chamados a habitar nos segredos da história humana, a chegar, se preciso for, até às “periferias da alma” a partir de uma situação que em nada externo se diferencia da luta pela vida que travam, dia a dia, os homens e mulheres do nosso tempo e no nosso contexto. Somos gente corrente, a viver junto de gente corrente, mas com um tesouro escondido que enche de gozo a nossa existência e nos transforma em fermento de Evangelho onde estivermos, partilhando, de acordo com a feliz expressão da Gaudium et Spes, as fadigas e as esperanças da Humanidade. Move-nos a certeza de que tudo quanto saiu das mãos de Deus é bom e deve recuperar toda a sua bondade. Tentamos descobrir e cultivar as «sementes do Reino» presentes em todo o gesto de bondade, em toda a procura sincera da Verdade, em todo o empenho por melhorar este mundo, em toda a tentativa de descobrir o sentido da vida…
Somos conscientes de ter sido enviadas às fronteiras da realidade, e de que, muitas vezes, nos “salpicarão” a dúvida, o desalento, a solidão, a sensação de ser apenas uma gota de água no oceano. Mas é mais forte a certeza do Amor que nos chamou, que enche as nossas horas e nos oferece diariamente os meios necessários para continuar a caminhar: a luz da oração, a força dos Sacramentos, o calor da fraternidade, a sombra benfeitora de Maria- “consagrada” a Deus no meio dos seus- caminhando ao nosso lado e acolhendo-nos no seu Coração…
Assim somos. Ou, melhor, assim queremos ser. Cremos que o Amor de Deus tem, em si mesmo, uma incrível força transformadora. Ao longo dos anos aprendemos a confiar menos nas nossas possibilidades e mais na força de Deus que atua através de nós e, tantas vezes, sem que nós próprias nos apercebamos. A consagração da própria vida no coração do mundo equivale a deixar a nossa existência nas mãos de Deus para que Ele fale, toque, sinta, escute, ame, por nosso intermédio.
Terminamos estas brevíssimas notas com umas palavras de Bento XVI. Assim nos falava em fevereiro de 2007, no encontro celebrado em Roma por ocasião do 60.º aniversário da Constituição Provida Mater Ecclesia:
«Anunciai a beleza de Deus e da sua criação. A exemplo de Cristo, sede obedientes por amor, homens e mulheres de mansidão e misericórdia, capazes de percorrer as estradas do mundo, fazendo somente o bem. No centro da vossa vida ponde as Bem-aventuranças, contrariando a lógica humana, para exprimir uma confiança incondicional em Deus, que quer o homem feliz. A Igreja tem necessidade também de vós para dar cumprimento à sua missão. Sede semente de santidade lançada em abundância nos sulcos da história. Radicados na ação gratuita e eficaz com que o Espírito do Senhor está a guiar as vicissitudes humanas, possais dar frutos de fé genuína, escrevendo com a vossa vida e com o vosso testemunho parábolas de esperança, escrevendo-as com as obras sugeridas pela "fantasia da caridade» (João Paulo II, Carta Ap. Novo millennio ineunte, 50).
Olga Elisa Molina – Filiação Cordimariana